Por um sistema de saúde inclusivo

Por um sistema de saúde inclusivo

A propósito da aprovação e recente publicação da Lei de Bases da Saúde (LBS), o Health Cluster Portugal (HCP) contratou com a Faculdade de Economia da Universidade do Porto (FEP) a realização de um estudo sobre as perspetivas de evolução a médio prazo do sistema de saúde português, com especial ênfase nas alterações que decorrerão da entrada em vigor da nova LBS. Uma das principais conclusões do estudo é que a nova LBS reflete uma visão do sistema de saúde português que é diferente da realidade atual e das políticas de saúde das últimas décadas. Apesar de não obrigar a alterações significativas no funcionamento do sistema e na política de saúde a curto prazo, a nova LBS fornece o enquadramento para que tais alterações possam ocorrer a médio prazo.

O novo enquadramento do sistema de saúde caracteriza-se por um reforço do papel do Estado central no sistema de saúde, através de uma maior intervenção do Governo e de um aumento da dependência do sistema face ao SNS. O sistema de saúde português é, desde há muitos anos, um sistema misto, com um setor público que não tem um peso muito superior aos setores privado e social, quer no financiamento (onde o SNS tem um peso inferior a 60%), quer sobretudo na prestação (onde o SNS representa apenas 50% do sistema, de acordo com os dados publicados pelo Instituto Nacional de Estatística na Conta Satélite da Saúde). O próprio HCP reflete esse carácter misto do sistema de saúde português. O HCP é um polo de competitividade da saúde que reúne 170 instituições de I&D, hospitais, empresas das áreas da farmacêutica, biotecnologia, dispositivos médicos, TICE e serviços, muitas das quais pertencentes ao setor público, mas também muitas outras dos setores privado e social.

A nova LBS praticamente ignora essa vasta e relevantíssima atividade privada e social no sistema de saúde e concentra toda a política de saúde no SNS.

O sinal mais evidente de tal mudança na visão do sistema é a eliminação na LBS das referências ao direito à liberdade de escolha na procura de cuidados de saúde e ao direito à liberdade de prestação de tais cuidados. Com a nova LBS, a livre iniciativa privada no setor da saúde passa, assim, a estar à margem da lei: não é proibida, mas também não é reconhecida como parte relevante do sistema de saúde português.

Há outros elementos da nova LBS que apontam para uma alteração da política de saúde no sentido de limitar os setores privado e social na saúde: o reforço do papel do Governo na formação pré e pós-graduada e no controlo do acesso à profissão dos profissionais de saúde, em detrimento do papel das ordens profissionais e das instituições privadas; a limitação da livre iniciativa na instalação de tecnologias médicas pesadas por entidades privadas, ao sujeitar tal instalação ao planeamento nacional definido pelo Governo; e a valorização do princípio da “dedicação plena” ao SNS dos profissionais de saúde, que poderá limitar a sua disponibilidade para prestarem serviço em entidades privadas.

A nova LBS limita também o potencial efeito positivo do setor privado e social no funcionamento do SNS, ao restringir os modelos e princípios de gestão que podem ser implementados. A não consagração dos princípios da autonomia de gestão e da gestão empresarial no SNS, contrariamente ao que ocorria na LBS anterior, limita a capacidade de inovação na gestão. Apesar de o texto da nova LBS remeter para legislação posterior à definição do modelo concreto de gestão das unidades do SNS, as propostas da maioria que a aprovou são todas no sentido da redução da utilização de gestão privada em unidades do SNS face à organização atual. A nova LBS também potencia uma redução da subcontratação de serviços de saúde pelo SNS a entidades privadas e do setor social, em especial porque exclui a possibilidade de tal contratação ser motivada por razões de eficiência ou redução de custos. O sistema de saúde português, que tem gerado os reconhecidos resultados positivos na saúde da população, sempre foi um sistema misto, com contributos muito relevantes do setor privado e social. A política de saúde não pode ignorar uma parcela tão significativa e relevante do sistema de saúde, sem pôr em causa o seu bom desempenho. Esperemos que legislação posterior supra essa lacuna da nova LBS.

Salvador de Mello

Presidente da Direção do Health Cluster Portugal

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