«O financiamento que cubra as necessidades é absolutamente necessário»

«O financiamento que cubra as necessidades é absolutamente necessário»

No início deste mês, Oscar Gaspar (OG) foi o convidado do programa «Tudo é Economia», da RTP 3, apresentado pelo jornalista André Macedo (AM). A negociação das novas tabelas da ADSE monopolizou o início da conversa.

O presidente da APHP teve a oportunidade de esclarecer que a ADSE reconhecia que a nova Tabela de Preços e Regras 2018, entretanto publicada, para entrada em vigor no dia 1 de abril próximo, continha erros e imprecisões que careciam de revisão.

Na sequência de várias reuniões, realizadas durante o mês de março, tem sido reiterada a necessidade de rever as temáticas que não foram objeto de negociação ou sobre as quais já havia sido manifestado um desacordo de princípio por parte dos hospitais privados, de forma a encontrar condições para encerrar adequadamente este processo negocial.

ADSE à parte, a entrevista abordou uma série de outros temas estruturantes para o setor da saúde, como o financiamento e a tecnologia, que aqui transcrevemos.

AM: […] Foi secretário de estado da Saúde entre 2009 e 2011. Apanhou um período complicado já do ponto de vista orçamental. A verdade é que há um subfinanciamento crónico do SNS, isto é, o orçamento que é definido todos os anos fica aquém das necessidades. Porque é que isto acontece?
OG: Essa é uma verdade e não é demais reiterá-la. Há, de facto, um subfinanciamento crónico da parte da saúde e, se quiser, do SNS. É uma boa pergunta porque é que acontece.

AM: Toda a gente já sabe, nos últimos anos os números são absolutamente claros, houve poucos momentos. Com o ministro da Saúde Correia de Campos houve um investimento reforçado, houve também com a Troika para pagar dívidas aos fornecedores e à indústria farmacêutica, mas, em regra, não há dinheiro para pagar aquilo que se sabe que vai acontecer.
OG: Porventura tem sido dada excessiva ênfase à questão da eficiência do sistema, dizendo que o sistema com um pouco mais de eficiência funciona com as verbas que lhe são atribuídas.

AM: Aumentando o ambulatório, reduzindo os internamentos?
OG: Mas não é verdade. Há um espaço grande para ganhos de eficiência, mas ainda assim, nós estamos de facto com uma despesa inferior àquilo que são as necessidades. E como é que o sabemos? Sabemos porque todos os anos se geram défices, todos os anos há acumulação de dívidas, olhamos para os dados da OCDE ou da UE e gastamos muitíssimo menos.

AM: Pode dar-nos alguns números sobre essa comparação com a OCDE?
OG: Neste momento, estaremos a gastar menos cerca de 30% do que a média da OCDE.

AM: O Estado ou per capita?
OG: O Estado. E por isso é que, há uns meses, os bastonários das ordens profissionais da Saúde disseram que faltariam qualquer coisa como 1.200 milhões de euros, por ano, à Saúde.

AM: Isso implicaria um salto monumental do orçamento do Estado para a Saúde, que já é o mais alto…
OG: Mas não é o mais alto.

AM: É o mais alto a seguir à Educação…
OG: E as pensões. Não se esqueça da Segurança Social. Mas a questão é, quando temos um determinado bolo orçamental, obviamente que há sempre decisões políticas e tem que se distribuir aquele bolo.
Primeiro a decisão política da dimensão do bolo, depois a sua repartição. A verdade é que, nesta repartição, como o valor absoluto da Saúde já é muito significativo, quando há necessidade de fazer um corte, a Saúde parece um candidato óbvio para fazer algum ajustamento. Mas isto não é viável ano após ano.

AM: O Ministro das Finanças olha para os grandes agregados do orçamento e diz: aqui é mais fácil cortar. Esta também tem sido a atitude do PS?
OG: O PS tem-no dito e o governo também, que o SNS é uma prioridade.
Penso que está a trabalhar no sentido de identificar os problemas e, por exemplo, o senhor Ministro da Saúde tem dito, inclusive, que é favorável a um orçamento plurianual para a Saúde. Ainda a semana passada ouvimos o Primeiro-ministro a dizer que está disponível para afetar os lucros do Banco de Portugal à redução da dívida. Tem que haver uma consciência clara de que há falta de verbas para a Saúde. Como alguém dizia a semana passada, numa conferência, «Mais dinheiro não resolve os problemas se mantivermos as práticas, mas sem dinheiro não conseguimos resolver os problemas». Por isso é que, por exemplo, no âmbito do Conselho Estratégico para a Saúde da CIP temos defendido que haja uma Lei de Meios, em que se saiba exatamente quais é que são as verbas que podem ser afetas à despesa corrente da Saúde, ou seja, à prestação de cuidados de saúde, mas também à Educação em Saúde, à Prevenção. Gastamos pouquíssimo em prevenção, gastamos cerca de 1%, quando a média na UE é de 3%. E temos consciência, se não é a prevenção, vamos ter mais despesa no futuro. Precisamos de mais verbas afetas à gestão da doença crónica. Precisamos de ter um pacote financeiro para os investimentos. Se visitar hoje os hospitais públicos do SNS, infelizmente perceberá que, muitos deles, precisam de investimento em termos de equipamentos, já para não falar do edificado.

AM: Os privados são melhores? É que a ideia é que o público, apesar de tudo, continua a ter uma qualidade de prestação de serviço, nomeadamente no acesso à tecnologia, que ultrapassa os hospitais privados.
OG: Não entrarei em competições entre público e privado. O que lhe posso dizer é que, referindo o Estudo do Prof. Augusto Mateus em meados do ano passado, porque é que as pessoas vão ao privado, porque é o que o privado vai ganhando quota de mercado? Porque é mais rápido, a questão do acesso, pela tecnologia que tem foco no doente. Mas a parte tecnológica e a parte da inovação são essenciais. Por isso é que nos anos mais recentes tem havido uma tendência para haver uma maior diferenciação dos hospitais privados. Porque percebem que, ou apostam realmente na inovação e na tecnologia de ponta, ou então ficam para trás.

AM: Como é que vê o problema da dívida à indústria farmacêutica? Atingiu 906 milhões em 2017, mais 14% que no ano anterior. Como é que se justifica isto numa altura em que a economia cresceu 2,7%? Porque é que a indústria farmacêutica é obrigada a aguentar esta fatura?
OG: Não é só a indústria farmacêutica, é a dos dispositivos médicos e, embora em menor escala, os hospitais privados, que também têm a receber do Estado umas dezenas de milhões de euros. Mas a questão tem a ver com o que perguntou há pouco, o subfinanciamento crónico do SNS leva inevitavelmente a um acumular de dívidas. Mesmo quando se fala este ano, em que são injetados, entre o final do ano passado e este ano, 1.400 milhões de euros, se nada se fizer, vamos pagar a dívida atrasada, mas vamos continuar paulatinamente a crescer a dívida à ordem dos 100-120 milhões.

AM: Quem é que sofre com isto? Sofrem os doentes porque têm menos acesso a inovação médica, a medicamentos novos? Foram aprovados 60 no ano passado, mais 9 do que no ano anterior. Sofrem as empresas que não têm capacidade para se aguentar? Há falências nesta área?
OG: Quem sofre em primeira linha são os portugueses que acedem aos serviços. Mas reportando a um conceito de um grande economista, o Michael Porter, estamos a falar de um cluster em que todo o cluster é afetado. São as empresas que têm problemas de tesouraria, são os custos de contexto. Não é confortável para um país como Portugal vir um CEO de uma internacional farmacêutica dizer que o país, comparado a nível mundial, tem um péssimo registo de pagamento. A afetação de verbas corretas, o financiamento que cubra as necessidades é absolutamente necessário para que o cluster da Saúde respire melhor.

AM: Isso dignifica, como ouvi dizer na semana passada nessa conferência, onde esteve e eu também estive, que é possível haver uma espécie de imposto especial para o SNS? Para responder aos desafios tecnológicos, envelhecimento da população? Isso gerou logo um burburinho na sala, ficou tudo preocupado…
OG: Claro, ninguém gosta de anunciar impostos e também não o fiz. O que me limitei a fazer foi remeter para um texto muito recente de um economista muito conhecido do Financial Times, Martin Wolf, que, considerando a situação da Inglaterra e não a portuguesa, diz que os políticos têm que ter a coragem de dizer aos cidadãos que a saúde é cara, e vai encarecer nos próximos anos, por causa da tecnologia, da inovação e do envelhecimento de que falava.

AM: Mas as margens de quem negoceia nesta área não são tão elevadas? Vimos que nos hospitais privados não são assim tão elevadas, mas na indústria farmacêutica não são?
OG: Quando se fala em inovação, há muitos estudos sobre o que é que vale a inovação. E aquilo que se tem comprovado nos últimos tempos é que a inovação é custo-efetiva. Ou seja, é preferível dar o medicamento e curar alguém que tem hepatite do que a pessoa ter que ser transplantada. Hoje temos o HIV como uma doença crónica e as pessoas têm mais 30-40 anos de vida do que tinham. São hoje um elemento produtivo da sociedade, quando há 30 anos não poderiam ser. Na gestão da doença crónica, hoje em dia é possível uma série de pessoas fazerem uma vida completamente normal, quando há uns anos não o faziam.

AM: O que significa que produzem e participam para a riqueza do país.
OG: Certo. A discussão da inovação é uma discussão boa e tem que se encontrar um equilíbrio entre aquilo que é a remuneração dos capitais investidos e aquilo que a sociedade pode pagar.

AM: Os críticos dizem que muita da inovação permite apenas uma sobrevida de algumas semanas ou um par de meses e que isso não compensa o investimento.
OG: Percebo isso, mas Lichtenberg, por exemplo, que é um conceituado economista americano da Saúde, há dois anos, fez um estudo sobre “A inovação médica em oncologia em Portugal” e concluiu que o efeito é muitíssimo positivo em termos das mortes evitadas e dos anos de vida ganhos.

AM: Temos resultados em algumas áreas da oncologia também precisamente por isso.
OG: Na inovação, de facto, nas últimas décadas, temos tido resultados absolutamente excecionais na Saúde. É verdade, a saúde acaba por ser cara. Hoje em dia temos meios complementares de diagnóstico que fazem muito mais. Porque hoje somos alertados mais cedo para o problema.

AM: O que depois reduz o custo final.
OG: Exatamente. A Moody’s muito recentemente alertou para o problema da demografia e uma coisa que diz, no seu introito ao texto, é que «não se justifica que haja cortes por cortes na Saúde». Os cortes saem caro. É preferível fazer uma reflexão sobre o que é a sustentabilidade de cada sistema.

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