Governo rompe negociações da ADSE com privados
Notícias da passada sexta-feira dão conta que o Governo pondera alterar o Decreto-Lei da ADSE no sentido de:
- Fixar preços dos medicamentos tendo em conta o preço de venda ao público em farmácias de rua e o preço de venda hospitalar;
- Fixar preço dos dispositivos médicos com base nos valores históricos praticados na rede ADSE;
- Fixar preço das cirurgias com base nos valores históricos praticados na rede ADSE.
A ser verdade, esta pretensão é um erro e constitui um boicote ao processo negocial que tem vindo a ser mantido entre a ADSE e os operadores privados.
Trata-se de uma decisão unilateral de rompimento das negociações, com a imposição aos operadores privados de cortes cegos nos preços, em particular dos medicamentos, dispositivos médicos e do valor dos actos cirúrgicos. Em termos de processo, a opção de impor cortes de forma administrativa e por via legislativa é um claro atropelo ao Conselho Diretivo da ADSE, que tem conduzido as negociações, mas também aos responsáveis políticos que, por várias ocasiões, assumiram que o único caminho com sentido de futuro era o do diálogo e negociação entre ADSE e APHP, enquanto representante dos operadores privados.
Mais, terá o Conselho Geral de Supervisão sido ouvido e emitido uma opinião?
Na sequência da publicação das novas tabelas para 1 de abril, que, aliás, não mereceu a aprovação da APHP, foi fixada uma agenda que tinha presente a necessidade de encontrar regras mais claras e estáveis para o preço dos medicamentos e das próteses mas que assumia existirem outras questões pendentes a resolver. Refira-se, a título de exemplo, a necessidade de adotar a Tabela da Ordem dos Médicos, já que a tabela da ADSE está reconhecidamente incompleta, desajustada e desatualizada, a definição de regras de valorização adequada do Atendimento Médico Permanente e do Serviço de Observações e a necessária inclusão do piso de sala nas cirurgias enquanto estruturas de custos, já agora e para que se entenda, devidamente reconhecidas e custeadas no âmbito da atividade financiada pelo SNS aos Hospitais públicos. Estava assumido que sem discutir os pontos em aberto não se avançaria para outras matérias e não encontramos nenhuma justificação para incumprir com este princípio.
Recorde-se que no último ano e meio foi já possível negociar um número alargado de regras e preços, que, sem exceção, representam uma poupança significativa para a ADSE (na oncologia, nos pacotes cirúrgicos, nas lentes, etc). Esta nova opção pela via legislativa vem 2 confirmar que, apesar das declarações formais de aceitação dos princípios negociais, nomeadamente no documento remetido a 7 de fevereiro, a ADSE, não aderiu aos princípios negociais básicos e tem como única orientação a imposição da sua vontade, ainda que sem base económica ou clínica. A ADSE sabe que até ao momento foi possível alguns pontos de equilíbrio, sem colocar em causa o compromisso dos prestadores privados com os beneficiários, focados nos serviços na pessoa e na dignificação do ato médico, de enfermagem e da farmácia hospitalar.
Quanto às 3 medidas que a ADSE/Governo quererá aplicar, refira-se, em termos resumidos, refira-se que as regras supramencionadas não têm racional económico, não têm qualquer respeito pela especificidade da prestação de cuidados de saúde, tratando tudo por igual, não são transparentes e prejudicam gravemente os beneficiários da ADSE.
Sobre a primeira medida há que referir que os hospitais não vendem medicamentos. Os hospitais, públicos ou privados, administram medicamentos de acordo com um processo que é distinto do da farmácia “de rua”, desde a aquisição ao aprovisionamento da medicação até à posterior manipulação do mesmo em unidose e subsequente administração aos doentes. Por isso, as regras sobre medicamentos de venda em farmácia “de rua” (que praticam um preço de venda ao Público – PVP) devem ser distintas das dos medicamentos hospitalares e serem adequados à natureza dos serviços prestados nos hospitais. A fixação de margens nos medicamentos hospitalares não pode ignorar que há atos que devem ser valorizados, nomeadamente de caráter farmacêutico, mas também de enfermagem, que são indissociáveis da administração do medicamento em ambiente hospitalar e em condições de segurança para os doentes. Por outro lado, fixar margens de medicamentos sobre o preço a que estes são comprados pelos hospitais do SNS (Preço de Venda Hospitalar), não constitui um processo transparente de definição de preços. Desde logo porque os hospitais privados não sabem, nem têm que saber, o preço a que os hospitais do SNS compram. A ser assim, no mínimo, uma entidade reguladora independente devia poder auditar a formação desses valores e assumir a responsabilidade da sua divulgação transparente ao mercado. Finalmente, também não é legítimo o Governo pretender que organizações empresariais se sujeitem a regras que podem ser estabelecidas de forma meramente administrativa e sem racional económico subjacente, nomeadamente os preços de transferência internos entre o Estado pagador e o Estado prestador (SNS).
Relativamente aos dispositivos médicos, para além de ser fortemente criticável a assunção da média de um preço como referencial, pelos impactos que tem na concorrência e pelo problema de transparência que coloca à semelhança do que foi referido anteriormente para os medicamentos, a questão também se coloca a nível do acesso dos beneficiários à prática clínica atualizada. Pretende o Governo que os beneficiários da ADSE tenham acesso aos mesmos dispositivos médicos que foram aplicados nos últimos três anos e dentro destes apenas os que ficam abaixo da média? Significa isto que os beneficiários da ADSE não irão ter acesso aos dispositivos cujo custo seja superior à média embora tenham benefícios clínicos claros? Qualquer evolução da legis artis mas que tenha custo superior à média fica excluída?
Em termos da regra sobre as cirurgias, volta a colocar-se a questão de se utilizar a média do valor histórico como referencial para o futuro. Esquecer-se-á o Governo que quem faz as cirurgias são profissionais cuja atividade deve ser remunerada em termos atualizados? Não se tem em conta que também os custos de estrutura de um hospital e de um bloco operatórios são impactadas pela evolução dos preços do país? O maior dos problemas, porém, não é o do valor em si mas é do princípio subjacente: a aplicar-se a regra prevista, e tal como no caso dos dispositivos médicos, os beneficiários da ADSE ficarão ainda mais inibidos ao acesso a técnicas cirúrgicas mais atuais que, ainda que possam oferecer benefícios claros e mais adequados à situação clinica do doente, poderão ser mais onerosas do que a média histórica.
Finalmente, e à semelhança dos dispositivos médicos, se se pretende fixar preços com base nos valores históricos praticados na rede da ADSE, então o dever da transparência contratual exige que uma entidade independente (p.ex. a Entidade Reguladora da Saúde) audite e tenha a responsabilidade de comunicar ao mercado a informação dos preços que efetivamente foram praticados pelos prestadores da rede ADSE.
Não estão, assim, a ser minimamente respeitadas as recomendações da Entidade Reguladora da Saúde, em termos de processo negocial e de racionalidade dos preços, o que compromete o acesso dos beneficiários da ADSE.
A ADSE já hoje beneficia de uma tabela de preços particularmente baixa face a outras entidades pagadoras, como por exemplo as seguradoras privadas. Os privados já trabalham hoje sob efeitos de esforço de eficiência elevados e, regra geral, a ADSE pratica preçosinferiores aos que se verificam no setor público, hoje reconhecidamente em estado de subfinanciamento crónico, traduzindo-se na falência técnica da esmagadora maioria dos hospitais do SNS e na incapacidade de investimento.
A ADSE e o Governo parecem preferir uma saúde “low-cost” (sem calcular o seu impacto nos custos a longo prazo), promovendo acordos com quem faça mais barato, não tendo em conta critérios de qualidade e resultados clínicos nem as actuais preferências dos Beneficiários. Acresce que em muitos casos, pretende faze-lo com entidades que não são obrigadas a licenciamento, ao invés dos hospitais privados, o que pode também pôr em causa a própria segurança com que os cuidados são prestados. Haverá certamente razões para que a Entidade Reguladora da Saúde exija aos privados o cumprimento de regras de licenciamento das unidades de saúde. Ou seja, porque quando estas regras não são cumpridas poderão por em causa a segurança e a qualidade dos cuidados prestados aos doentes.
A fixação de preços, não tendo em conta a sustentabilidade dos operadores privados, é inaceitável e desnecessária. Recorde-se que ainda esta semana foi publicitado que a ADSE encerrou 2017 com um superavit de 58 Milhões de euros, valor que acresce ao saldo positivo acumulado nos últimos anos. Não há nenhum estudo recente e completo sobre as condições para a sustentabilidade da ADSE no futuro. Aliás, tanto quanto se sabe, o único estudo independe que está a ser desenvolvido foi desencadeado pela APHP.
Pelo lado dos beneficiários, que têm sido sujeitos a uma paulatina redução de coberturas (pelo desajustamento da tabela da ADSE que fica muito aquém da tabela da Ordem dos Médicos, que não considera os dispositivos mais modernos, que não cobre internamento de longa duração etc), a evolução para uma medicina de mínimos faz com que a ADSE perca interesse.
As medidas agora anunciadas só podem ser interpretadas como um ataque ao setor da hospitalização privada em Portugal e aos profissionais clínicos envolvidos, em particular os médicos que veem limitada a sua capacidade de atuação clínica. Na verdade, um ataque aos beneficiários da ADSE que, apesar de hoje serem responsáveis pelo financiamento integral do subsistema, assistem impotentes ao condicionamento do seu acesso à prestação de cuidados de saúde de qualidade. Esta forma de atuação ameaça a visão de longo prazo e a sustentabilidade do setor privado que todos os dias ajuda o Estado a combater listas de espera de cirurgia, exames, controlo de doenças crónicas, etc., com impacto direto na economia e em milhares de postos de trabalho que deveriam merecer o respeito da ADSE e do Governo.
Não existe sustentabilidade da ADSE sem sustentabilidade em simultâneo dos operadores privados. Pôr em causa este princípio ou é uma fantasia ou tem por detrás a intenção de acabar com este subsistema.
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