José Roquette “É irrealista pensar que podia deixar de haver privados na saúde”

José Roquette “É irrealista pensar que podia deixar de haver privados na saúde”

José Roquette é o novo presidente do, também ele novo, conselho científico criado pela Associação Portuguesa de Hospitalização Privada. Cirurgião cardiotorácico, tem uma longa carreira médica, que começou na passagem para a democracia e atravessa os 50 anos de vida do Serviço Nacional de Saúde. Numa primeira entrevista, assume que ainda existe uma “oposição puramente ideológica” à atividade dos privados no setor da Saúde, mas garante que esta é uma situação “inelutável” até porque “é irrealista” pensar que o Estado consegue suprir todas as necessidades. “Quem acreditar que é possível dar uma resposta de 100% às necessidades da população sem contar com os privados não está a pensar bem”, afirma. No arranque desta sua nova missão, promete reforçar “a voz aos médicos”, promover a articulação com a Ordem dos Médicos e com o Estado, mas com uma prioridade fundamental: “a relação do médico e do doente tem de estar sempre acima de tudo”.

 

Aos 53 anos, a APHP constituiu, pela primeira vez, um conselho clínico. Como vê esta sua nova missão?

Só peca por tardia. O apoio do conselho clínico só pode ser benéfico para esta associação, porque faz a interface com muitos aspetos com que a associação lida no seu dia a dia. Ter médicos aqui representados é muito importante. E até daria um passo a seguir que era o de envolver outras áreas da Saúde, como enfermeiros e técnicos.

 

Estão representados todos os grandes grupos privados da saúde?

Estão representadas as grandes unidades, cada membro do conselho foi indicado por uma delas. E juntos, vamos apoiar a associação em temas que, sendo clínicos, por vezes estão numa zona cinzenta onde, provavelmente, os responsáveis da APHP não se sentiam muito confortáveis a intervir. Precisamente por ser uma área cinzenta. Nomeadamente, na relação com as entidades financiadores, como a ADSE, na relação com o Estado e com o Ministério da Saúde. Tudo áreas fora da gestão, onde não vamos entrar, primeiro porque não temos capacidade e, por outra, porque achamos que a Associação o faz bem.

 

Uma das tarefas que o conselho pode ter é a de trazer para o debate assuntos que considerem prioritários. Quais são, para si os temas prioritários?

Há três ou quatro temas muito relevantes. Por exemplo, a articulação com a ADSE é um tema muito relevante, porque a ADSE ainda representa um número muito significativo de utentes.

 

Estamos a falar de um universo de 1,4 milhões de pessoas…

Sim, é um número muito significativo de utentes e quando falo na ADSE, associo também as outras empresas seguradoras. E, aí, nós podemos ter algum impacto. Desde logo, pelo conhecimento que temos da área da clínica, que nos permite analisar e trocar impressões de uma maneira mais efetiva. Outro tema é o SIGIC (Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia), o cheque para fazer cirurgias fora. Há aqui alguma distorção no sentido económico e temos de pôr a área clínica à cabeça. E vamos trabalhar nessa área. E há, depois outro tema, que não sendo diretamente relacionado com a associação, tem impacto no dia a dia dos colegas que trabalham nas instituições privadas, que são as nossas carreiras dentro das instituições privadas. Não será, provavelmente, fácil conseguir chegar a um acordo com as várias entidades que pertencem à APHP, mas acho importante que esse assunto também seja ventilado e discutido.

 

Porque a Associação tem um papel na contratação coletiva…

E podia também influenciar. Hoje, isto não está estruturado numa perspetiva global e há grandes diferenças entre as unidades de saúde privada. No fundo, há várias coisas em que podemos ajudar a tornar a associação mais forte e competitiva.

 

Acha importante trazer a voz dos médicos para a Associação?

Exatamente.

 

Põe sempre ênfase na necessidade de melhorar a relação com o doente ou com o utente dos serviços de saúde. Acha que este também é o papel deste novo conselho?

Sim, porque esse é o papel dos médicos. Os médicos nunca podem abdicar dessa situação, porque essa é a sua razão, é o seu fulcro, é o seu juramento. Os médicos têm de ter sempre à cabeça que exercem a sua profissão para tratar os doentes e para os tratar da melhor maneira possível. A Humanidade na relação é crucial. A relação do médico e do doente tem de estar sempre acima de tudo. E, por vezes, esse aspeto é menosprezado e aí acho que também podemos fazer a diferença.

 

Faz sentido ter um código de ética para os profissionais de saúde do setor privado, ou é desnecessário, porque um médico é um médico no público ou no privado?

Esse é um bom desafio, porque podemos ser a mão atuante e dar um contributo. Há muita discrepância entre as práticas, porque as estruturas e as filosofias são diferentes. E há outra coisa que tem tendência a inquinar, que é o facto de estarmos a envolver o ponto de vista económico e financeiro em algumas das nossas práticas. Este é um dos defeitos da medicina privada, que temos de tentar evitar, sobretudo quando se torna excessivo. Acho que o conselho científico pode ter aqui um papel relevante, tentando uniformizar práticas e mantendo o respeito pela relação do médico com o doente, e com as suas famílias, que têm sempre um papel muito importante.

 

Como médico, que prognóstico faz desta nova missão, nomeadamente nessa capacidade de mediação?

Ao longo da vida aprendi que se consegue sempre fazer o que queremos, quando queremos muito e quando sentimos que estamos do lado correto. É preciso estar disponível para trabalhar e o passo dado pela associação é um bom sinal. Na Luz Saúde puseram-me a alcunha de ‘action man’. Eu gosto de fazer. Sou um fazedor. Portanto, neste desafio, acho que temos condições de poder fazer qualquer coisa de útil, não só para a associação, mas também para a medicina portuguesa em geral.

 

Tem uma vastíssima experiência. Aliás começa a exercer medicina antes do 25 de abril…

Acabei o curso em 1971, depois fiz o internato geral e já estava em cirurgia quando fui para a tropa. Fui chamado para prestar assistência à frota bacalhoeira, já depois do 25 de abril. Foi uma experiência.

 

Isto para dizer que conhece bem o sistema de saúde neste período de transição para a democracia. Como vê a evolução?

Tenho pena, porque, quando eu comecei, havia uma enorme escola. Havia nomes de relevância em quase todas as áreas da Medicina e de top a nível quase mundial. Perdeu-se um bocadinho isso, dos mentores, dos professores. Já não vemos isso. É uma lacuna, um aspeto que se degradou muito ao longo dos tempos.

 

Isso é causado porquê? Pelo excesso de especialização…

Não. Acho que foi uma coisa puramente legislativa, ou político-legislativa, que fez com que se perdesse essa relação de formação, das pessoas fazerem carreira, entrarem para os hospitais e quererem ser chefes de serviço. Essa ideia está hoje muito abandonada. Passou. São os contratos individuais, as avaliações, uma plataforma que não tem grande realidade. Nós conhecíamos as pessoas, o que faziam, quais eram as suas capacidades e o que podíamos contar com eles. Tínhamos uma luta sistemática para conseguir melhor, melhor, melhor. Melhores resultados, melhor experiência. Hoje, isso está um bocadinho esquecido.

 

Também há uma diferença no peso dos privados da Saúde, entre quando começou e agora.

Exato. Na altura, havia a CUF e a Cruz Vermelha. E com muito menos utentes. Há uma diferença enorme entre os cuidados prestados pelos privados na altura e agora. Por um lado, pela evolução tecnológica que existiu ao longo deste tempo. Esta tecnologia forçou uma evolução muito grande. Depois, há aspetos de formação que têm vindo a ser um bocadinho mais valorizados. Mas houve um período de transição, que foi a parte em que os privados vieram ocupar um espaço. Porque esse espaço estava vazio. O Estado nunca conseguiu suprir todas as necessidades e ocupamos esse espaço por direito e com qualidade.

 

Ao nível de qualidade, os privados competem com o público?

Sim. Competem para melhor e isso é salutar. Os privados começaram a meter tecnologia dentro dos hospitais e o público foi acompanhando, mesmo se com algum delay. E depois, os privados foram crescendo e ocupando espaço. E como conseguem atingir um grau de eficácia e de qualidade, as pessoas procuram-nos e os seguros crescem. Este é o enquadramento. Se o Estado conseguisse suprir todas as necessidades e tivesse qualidade em todas as áreas, os privados não conseguiam entrar no mercado.

 

Acha que continua a existir um preconceito em relação aos privados?

Mais atenuado, muito mais atenuado.

 

É uma perceção dos utentes, ou mais da opinião pública e publicada?

Acho que é mais do publicado do que do público. Continua a haver uma oposição puramente ideológica em relação aos privados. Nas PPPs houve, de facto, uma discriminação ideológica que não se compreende. Em Loures, por exemplo, o próprio presidente da Câmara, que era comunista, não queria que deixássemos de continuar a explorar o Hospital Beatriz Ângelo. Foi uma posição puramente ideológica.

 

E está a atenuar-se?

Em relação às unidades puramente privadas está a atenuar-se muito. Aquele conceito “é complicado, vamos para o Estado”, praticamente não se sente. Porque as pessoas sabem que os privados tratam situações de altíssima complexidade e essas situações são, na maioria dos casos, muito bem tratadas. Já não há aquele anátema de que se temos um caso complexo tem de ser feito no público. Faz-se também muito bem no privado. Fazemos transplantações de órgãos simples, mas temos condições para fazer outras.

 

O que é que este conselho científico pode fazer para atenuar esse preconceito ideológico que diz existir?

Podemos manifestar a nossa posição e demonstrar que não há razão para este preconceito ideológico existir. Mas isso é uma casa que demora muito tempo a construir. Porque têm de ser os próprios utentes a perceber a realidade.

 

Pode-se falar numa revolução silenciosa? Porque, a verdade é que o peso da prestação de saúde privada é cada vez maior.

É uma revolução. Não sei se é silenciosa, mas é uma revolução. No sentido da consistência deste processo, que o torna um processo inelutável. Porque é irrealista pensar que podia deixar de haver privados na saúde. Olhando como está o SNS, era impossível. É irrealista. Quem acreditar que é possível dar uma resposta de 100% às necessidades da população sem contar com os privados não está a pensar bem. Há problemas? Há. Há relações que não são as ideais? Há. E é aí que esta associação pode ter um impacto grande, ao aproximar-se, ao falar, trocar impressões, envolver o Ministério e a Ordem dos Médicos, que não pode ficar fora do processo. A Ordem dos Médicos não pode ser só dos médicos do setor público.

 

O que gostava de deixar como marca sua nesta associação?

Desde logo, o ter dado o pontapé de saída do conselho científico. Nestes dois anos, quero deixar a semente do reconhecimento da atividade da associação, ajudando a tirar este estigma de que as instituições privadas só querem o lucro e só tratam as coisas de lana-caprina. Se conseguir fazer isto já fico satisfeito. E depois passo a pasta.

 

Se resumisse numa palavra o que quer fazer…

A palavra é “excelência”. No sentido da qualidade da prática clínica, da relação médico-doente, na relação com as instituições onde trabalhamos e entre as várias unidades. Sem clubismos. Não podemos estar aqui a defender a nossa Casa, mas a defender a filosofia que está inerente às unidades privadas.

Partilhe

Deixe um comentário