«A falta de vontade política e a falta de investimento nessa área do cancro custam caro ao país»
A presidente da Plataforma EVITA, que tem um papel único na identificação de portadores de variantes genéticas com predisposição para cancro hereditário, alerta que há muito por fazer, em Portugal, na prevenção e tratamento do cancro. Diz que é urgente consciencializar, sobretudo os homens; que há tempos de espera inaceitáveis para o aconselhamento genético, a prevenção, o diagnóstico precoce e o tratamento de precisão do cancro hereditário; e que até o acompanhamento da saúde mental na família não tem a resposta desejada. Sobre a maior participação dos hospitais privados nesta área, é perentória: «Qualquer doente oncológico vai preferir ser atendido, operado ou tratado o quanto antes, independentemente do setor».
- A Associação Evita e, mais tarde, a EVITA Platform nascem na sequência do seu diagnóstico de propensão para desenvolver cancro. Foi a falta de apoio que a motivou?
A EVITA Platform nasce na sequência da identificação das lacunas que o nosso sistema de saúde atualmente apresenta na identificação de portadores de variantes genéticas com predisposição para cancro hereditário, pela Associação EVITA – Cancro Hereditário.
A associação nasceu há 14 anos na sequência do meu diagnóstico enquanto portadora duma variante no gene BRCA1, que aumenta significativamente o risco de desenvolver cancro da mama, ovário e próstata. Na altura teria muitas decisões informadas para tomar e fazia-me imensa falta falar com outros portadores, pois como não era doente oncológica, não me podia dirigir para uma associação de doentes. Pedi à Dra. Fátima Vaz da clínica do risco familiar, IPO Lisboa, para me pôr em contacto com outros portadores pois estava a pensar em fundar uma associação para as famílias afetadas por síndromes de cancro hereditário, que são muitas, umas mais frequentes, outras muito raras, mas todas elas complexas. Primeiro, a Dra. Fátima encaminhou-me para uma conferência da associação americana FORCE, onde me cruzei com 700 portadores e especialistas de todo o mundo, o que foi uma experiência única que consolidou a minha decisão de fundar a EVITA. A seguir fui convidada para apresentar a ideia da associação durante uma sessão informativa da clínica do risco familiar com os seus utentes e especialistas no auditório do IPO. A partir daí, começamos a reunir com os interessados com regularidade e a EVITA nasceu no dia 31 de maio 2011. Durante todos estes anos, e depois de contactar com milhares de portadores e apoiar centenas de famílias, conseguimos identificar as necessidades reais desta população.
- Nesse contexto, a sua principal missão é transmitir a cada pessoa “EVITA adoecer” após um diagnóstico de predisposição genética para cancro hereditário? Ou há outra justificação para o nome da associação e da plataforma?
Sim. O nome vem do verbo “evitar”. É tanto o imperativo “evita” a doença, como também o facto de ao termos conhecimento da nossa predisposição genética e agirmos, “evita” com que fiquemos doentes.
- Na EVITA Platform há um questionário para saber se a pessoa poderá ser elegível para um aconselhamento genético. O que motiva essa triagem?
O questionário de 10 perguntas baseia-se nas recomendações nacionais do PROGO e visa permitir fazer uma pré-triagem a pessoas que podem ser elegíveis para um aconselhamento genético, mesmo sem qualquer conhecimento de base. O importante é conhecer bem a história familiar e pessoal de cancro e repetir o questionário cada vez que houver uma alteração na história. O resultado é gerado de imediato e no caso dum resultado “positivo”, recomendamos a realização do aconselhamento genético, uma consulta que queremos disponibilizar dentro da EVITA Platform em telemedicina, como também a consulta de psicologia.
- Estima-se que, em Portugal e na Europa, 10% dos casos de cancro sejam hereditários. Faz-se tudo o que se podia fazer na identificação de portadores de alterações genéticas de alto risco para o cancro? Porquê? O que falta fazer?
O cancro hereditário representa perto de 10% de todos os cancros com uma incidência anual de sete mil novos casos em Portugal e quase meio milhão na Europa. No entanto, não temos dados, pois o Registo Oncológico Nacional não diferencia os cancros hereditários dos esporádicos. Adicionalmente, temos uma variante fundadora portuguesa no gene BRCA2 que nos torna no Estado-Membro com mais portadores BRCA2 na Europa. Esta variante só é encontrada quando é proativamente procurada, ou seja, com 2 milhões de portugueses emigrados, temo-nos deparado com vários casos de testes genéticos falsos negativos fora de Portugal, o que nos levou a pedir a emissão duma nota pela ERN GENTURIS para chamar atenção à importância desta variante em pessoas com ancestralidade portuguesa. A coordenadora dessa rede europeia, a Prof.ª Nicoline Hoogerbrugge, afirma que atualmente só 20% dos portadores estão identificados, o que representa uma oportunidade desperdiçada de prevenir ou diagnosticar precocemente o cancro hereditário, que adicionalmente surge em idade precoce, antes dos rastreios populacionais. São, na sua maioria, pais de filhos menores que são surpreendidos com um diagnóstico, não raras vezes em estádios mais avançados. Estima-se também que 15% a 20% dos cancros pediátricos sejam hereditários. Imagina-se facilmente a enorme carga socioeconómica desse tipo de cancro que não tem dados no nosso país. A falta de vontade política e a falta de investimento nessa área do cancro custam caro ao país, para não falar do drama familiar que se instala quando uma jovem mãe fica gravemente doente. Mais de metade dos doentes com cancro hereditário não cumpre os critérios atuais de referenciação para o teste genético, o que os coloca em risco de outros cancros primários e futuros cancros nos familiares.
Outra lacuna grave é a falta de literacia genética nos profissionais de saúde fora das especialidades de oncologia e genética médica. Cada gene relacionado alterado aumenta o risco para um grupo de órgãos; cada órgão afetado pode envolver um painel de genes, pois descobrimos cada vez mais genes que aumentam o risco para cancro hereditário. Pela complexidade das síndromes, precisamos de soluções digitais para facilitar a triagem às pessoas que podem beneficiar dum aconselhamento genético, o que deve acontecer sempre antes e depois do teste genético.
Por falta de recursos, temos tempos de espera inaceitáveis para o aconselhamento genético, a prevenção, o diagnóstico precoce e o tratamento de precisão do cancro hereditário. Temos portadores que ficaram doentes à espera da sua prevenção. Também a necessidade do acompanhamento da saúde mental na família não tem a resposta desejada.
Por tudo isso, desenvolvemos a EVITA Platform durante os últimos 6 anos, com muito investimento, dedicação, motivação e persistência.
Além do perfil do utilizador, qualquer pessoa interessada no seu risco, portadores e doentes oncológicos, temos também os perfis do “profissional de saúde” e do “investigador”, pois queremos melhorar os cuidados e a investigação, como também o processo da Avaliação de Tecnologias de Saúde (ATS).
- É “Patient Expert” pela Academia Europeia de Pacientes EUPATI e representa os portadores de mutação genética com alto risco para cancro em várias organizações europeias. Nos domínios do diagnóstico, prevenção e tratamento, como é que Portugal se compara com os indicadores europeus? Na prevenção estamos a orçamentar bem abaixo da média europeia, o que indica que focamos mais no remédio. Se não prevenirmos melhor o desperdício e a doença, arriscamos a sustentabilidade do sistema. No diagnóstico não estamos mal, embora haja espaço para melhorar, como por exemplo no diagnóstico da predisposição genética, não só para cancro hereditário, mas também para muitas doenças raras. Relativamente ao tratamento, temos instituições a responder muito bem, mas o acesso à inovação precisa de ser agilizado.
- O que origina essa situação? Falta de orçamento? Há ineficiências? Há desarticulação dos agentes do setor? Falta interoperabilidade dos sistemas? Não há harmonização da capacidade instalada no país?
O Infarmed está a aumentar os recursos, o que pode ser útil nesse sentido. No geral, a qualidade dos nossos cuidados ainda depende um pouco do nosso código postal. Situações raras e complexas devem ser devidamente acompanhadas por centros de referência certificadas pelas redes europeias. Um problema grave é a falta de interoperabilidade dos sistemas. O registo único do doente é imperativo. Entretanto, tentamos apoiar o utilizador da EVITA Platform, disponibilizando um espaço seguro dentro da plataforma para fazer o upload de toda a informação clínica de forma centralizada na “área clínica”. O princípio base da plataforma é: o utilizador é responsável pela sua saúde e pelos seus dados, tendo a possibilidade de dar acesso ao profissional de saúde, autorizado à informação selecionada pelo utilizador. Também tem nessa área clínica um diário clínico onde o oncologista autorizado pode perceber como o seu doente tem estado desde a última consulta, podendo preparar melhor a próxima consulta, com novas propostas.
- A dia 4 de fevereiro, a Comissão Europeia assinalou o Dia Mundial do Cancro, com a edição de um Perfil da doença na Europa. O documento prevê que a incidência do cancro em Portugal aumente 20% até 2040, sobretudo nos homens. O que justifica este cenário?
Em primeiro lugar, somos o país com a população mais envelhecida e o envelhecimento é um dos principais fatores de risco para desenvolver cancro. Depois são os estilos de vida associados e comportamentos de risco. Empiricamente, os homens são menos literados em saúde e demonstram menos proatividade na preservação da sua saúde. Nota-se bem em questionários à população, que têm sempre uma forte componente feminina nas pessoas que respondem. Temos aqui um trabalho para fazer para melhorarmos a comunicação em saúde para a população masculina.
- O Plano de Emergência da Saúde, em maio de 2024, introduziu o programa OncoStop2024 como estratégia para eliminar os atrasos na cirurgia oncológica. Que balanço faz da medida?
Já saíram os primeiros números e vemos um aumento na resposta, mas ainda há espaço para melhorar.
- No atual contexto, faria sentido uma via verde oncológica nacional, com a colaboração dos hospitais privados?
As pessoas querem preservar a sua saúde ou ter acesso ao melhor tratamento possível. Temos um bom serviço nacional de saúde, mas pela falta de resposta, os setores complementares tiveram um grande crescimento, nomeadamente os hospitais privados. Qualquer doente oncológico vai preferir ser atendido, operado ou tratado o quanto antes, independentemente do setor. Os decisores devem estudar a melhor forma de manter o equilíbrio, no sentido de não enfraquecer o SNS e reforçar os recursos para uma melhor saúde dos portugueses.
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