Saúde: Por uma lei de Bases inclusiva e moderada
É importante uma nova Lei de Bases da Saúde, mas não para estabelecer imperativamente um Estado omnipresente e um setor social e empresarial residual.
Em 1990 foi aprovada a atual Lei de Bases da Saúde. Nestes 28 anos, Portugal conheceu uma impressionante evolução no setor da saúde e pode hoje orgulhar-se de apresentar indicadores que comparam bem, e em alguns casos mesmo muito bem, com a generalidade dos países desenvolvidos. Em nenhum outro sistema de prestação pública (por ex., educação ou justiça), e apenas num número limitado de outros setores da economia, Portugal evoluiu, nos últimos 30 anos, de forma tão positiva como na Saúde. Para este resultado não é certamente alheia a atual Lei de Bases da Saúde: à sua luz consolidou-se um SNS universal e plural, consolidou-se um setor social e empresarial de inovação e de prestação, e, com tudo isso, consolidaram-se ganhos em saúde.
É, no entanto, evidente que, face ao panorama que se vivia em 1990, existem relevantes fatores de evolução que justificam a ponderação de uma nova Lei de Bases:
– Evoluiu a estrutura demográfica, com o envelhecimento da população e os fluxos migratórios;
– Evoluiu a afirmação da relevância da prevenção e dos cuidados primários, bem como dos cuidados continuados;
– Evoluiu a consciencialização de que a proteção da Saúde envolve não apenas direitos, mas também deveres;
– Evoluiu a perceção da transversalidade das questões da saúde e a exigência de articulação das políticas públicas;
– Evoluiu o papel da Inovação, da I&D e das instituições (universidades, pólos científicos, empresas, associações) que a elas se dedicam;
– Evoluiu a visão de que a alocação de recursos públicos à Saúde é um investimento e não um custo;
– Evoluiu a importância das tecnologias da saúde e da digitalização, a par da perceção de que o ritmo de inovação a que se assiste implica, sob pena de insustentabilidade financeira, escolhas públicas baseadas em critérios de equidade no acesso;
– Evoluiu o foco nas questões éticas da genómica e em geral das ciências da vida;
– Evoluiu o arsenal terapêutico disponível, com a biomedicina e os biomedicamentos, a par do reconhecimento legal de terapêuticas não convencionais;
– Evoluiu a quantidade, a qualidade e a dispersão da informação em saúde;
– Evoluiu a afirmação e o reconhecimento legal de múltiplas profissões em saúde, incluindo a criação de novas Ordens Profissionais;
– Evoluiu o peso setorial da saúde, que representa hoje um motor do desenvolvimento económico e social, abarcando perto de 89 mil empresas e empregando 279 mil trabalhadores.
Não é, porém, nestes tópicos novos que se foca a proposta de Lei de Bases apresentada pelo Governo, mas antes numa alteração estrutural do setor da prestação de cuidados de saúde, acolhendo – e visando impor a todos – uma visão estatizante e um regime de monopólio público no contexto do SNS. Esta intenção de alteração de paradigma está evidenciada em diferentes aspetos da proposta de lei:
- A degradação do conceito de Sistema de Saúde. Na Lei de Bases em vigor, o conceito central é o de Sistema de Saúde, que abrange todas as entidades – públicas e privadas – que atuam na prestação de cuidados, dando natural destaque ao SNS, que constitui o elemento fundamental de concretização das imposições constitucionais neste campo. Em sentido inverso, a proposta do Governo adota uma visão isolada do SNS.
- A descaracterização da liberdade de iniciativa e da concorrência. Na atual Lei de Bases, o setor funciona em regime de liberdade de prestação e de concorrência. Ao contrário, na proposta do Governo, as entidades sociais e privadas são conduzidas a uma função complementar e residual.
- O desaproveitamento das vantagens da interação público/privado na gestão do SNS. Na Lei em vigor, a associação de entidades privadas à gestão de unidades públicas é admitida, desde que seja vantajosa para o Interesse Público. Na proposta do Governo, é imposto, como princípio, um monopólio legal de gestão pública, apenas podendo ser associadas entidades privadas de forma supletiva e temporária e em caso de necessidade.
- A lógica de planificação administrativa no SNS. A Lei de Bases introduziu, em 1990, de forma inovadora, a ideia de gestão empresarial das entidades públicas de prestação de cuidados de saúde, o que a proposta do Governo contraria, em função de “instrumentos e técnicas de planeamento”.
- A instrumentalização da regulação profissional. As Ordens profissionais (Médicos, Enfermeiros e das outras profissões da saúde) baseiam-se na autonomia e na autorregulação profissional que a lei reconhece e fomenta. A proposta do Governo, porém, trata-as como ‘instrumentos de responsabilidade do Estado’.
É imprescindível que uma Lei de Bases assente num consenso moderado e inclusivo – como o que consta da proposta da Comissão designada pelo Governo, cujos elementos de equilíbrio e de liberdade foram abandonados no texto submetido à Assembleia da República – e que esta poderá, e deverá, recuperar.
É importante uma nova Lei de Bases da Saúde, mas não para estabelecer imperativamente um Estado omnipresente e um setor social e empresarial residual, o que constituiria um retrocesso que os bons resultados em saúde obtidos nos últimos anos demonstram não ser um caminho correto.
É importante uma nova Lei de Bases da Saúde, sim, mas para estabelecer os princípios da regulação dos verdadeiros fatores de evolução das últimas três décadas. Um diploma novo que, tal como foi o de 1990, seja abrangente e moderado, tenha uma vocação de longo prazo e seja inspirador e propulsor da adaptação aos novos tempos e às novas realidades. Uma nova lei que possa constituir um fator de agregação dos cidadãos, da sociedade e do Estado na construção de um Sistema de Saúde que garanta o direito à proteção da saúde, num quadro de liberdade de escolha e de iniciativa pública, social e privada, num quadro de articulação de políticas públicas que promovam a I&D, num quadro, enfim, de afirmação de Portugal como um país que atinge bons resultados em saúde e respeita a sua matriz constitucional de economia social de mercado.
Os presidentes da Associação Nacional das Farmácias (Paulo Cleto Duarte), Associação Portuguesa das Empresas de Dispositivos Médicos (Antonieta Lucas), Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (Oscar Gaspar), Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (João Almeida Lopes), Federação Nacional dos Prestadores de Cuidados de Saúde (Bruno Henriques) e Health Cluster Portugal (Salvador de Mello).
Deixe um comentário
Tem de iniciar a sessão para publicar um comentário.