«O SNS caminha para um colapso que não convém a ninguém, incluindo ao setor privado»

«O SNS caminha para um colapso que não convém a ninguém, incluindo ao setor privado»

Médico e gestor hospitalar, com experiências de administração em hospitais públicos, sociais e privados, Artur Osório Araújo, que presidiu à APHP entre 2011 e 2013, revela-se, nesta entrevista no âmbito dos 50 anos da associação, muito crítico, quer da organização dos serviços de saúde em Portugal, quer dos preconceitos ideológicos que a condicionam. Diz que o SNS precisa de outra visão do mundo, da sociedade e da doença. E que «a concorrência e a liberdade de escolha informada serão o motor do sistema de saúde».

 

1 – O que o motivou a candidatar-se à presidência da APHP?

Não houve uma motivação especial. Durante anos acompanhei de perto a vida da APHP e em especial o empenho e saber do meu antecessor, engenheiro Teófilo Leite. Dado a sua não recandidatura fui convidado por vários Associados para apresentar a minha candidatura, só o fazendo face ao parecer favorável do Conselho de Administração do Grupo Trofa Saúde, onde desempenhava as funções de Vice-Presidente. A acumulação implicou algum sacrifício pessoal, mas assumi o desafio com o maior gosto e dedicação.

 

2 – Quais os principais desafios e conquistas da APHP no seu mandato? 

Dediquei à saúde toda a minha vida profissional. Como médico, cedo acedi a lugares de Chefia e altamente diferenciados no IPO – Porto e posteriormente no Hospital Pedro Hispano. Conheci por dentro o funcionamento e organização de instituições de países desenvolvidos. Cedo formei uma consciência crítica em relação à forma como o nosso Sistema de Saúde funcionava e à necessidade de profundas reformas, onde a hospitalização privada deveria desempenhar um papel importante – transportando a modernidade e o respeito pelo doente para o sistema de Saúde.

 

Os destinatários deviam estar acima das corporações e dos interesses políticos. Claro que o sistema coletivista em que se transformou o SNS, em especial alguns dos seus mentores e prisioneiros de uma teia clientelar e estática, bem inseridos no espaço público e na política, tentavam sempre estigmatizar a Hospitalização Privada como exploradora e saprófita.

Como presidente da APHP procurei remar contra a imagem negativa da Hospitalização Privada, aproveitando uma fase de grande crescimento e sua progressiva aceitação pelos doentes. Foquei muito a atuação da Direção da APHP no reforço de uma boa imagem externa, utilizando de forma intensiva os media e a presença em numerosos fóruns, realçando o papel de relevância pública da Hospitalização Privada, sem a qual todo o Sistema de Saúde Português entraria em colapso.

Desenvolveu-se uma intensa atividade em diversas frentes, só não se podendo ir mais longe pelas limitações do exercício de direção em part-time.

O relacionamento com o Poder Político e em especial com o Ministério da Saúde ocorreu num contexto difícil, mas positivo e num ambiente de respeito mútuo. O favorecimento nos processos de licenciamento dos hospitais públicos e os de índole social foi uma divergência que procuramos expressar.

Procurou-se manter o relacionamento próximo com a União Europeia de Hospitalização Privada (UEHP), numa fase em que esta ainda demonstrava pouca capacidade agregadora e de lobbing.

Em três anos, a voz da Hospitalização Privada era mais respeitada e mais forte e começou a sentir-se um ambiente de aceitação num contexto de complementaridade do SNS.

 

3 – Qual foi o tema a que teve de prestar mais atenção? Porquê?

Sem dúvida que o dossier ADSE se revelou o mais difícil e exigiu mais atenção. Ameaçada de extinção e depois transformada num subsistema de adesão voluntária, controlada pela práxis estatizante, era um organismo anquilosado, pouco dotada de quadros técnicos e que utilizava práticas autoritárias no relacionamento com os prestadores e cuja expressão máxima foram as chamadas regularizações. Esse dossier foi complexo, tendo a APHP optado por oferecer apoio técnico a fórmulas de “empacotamento” de atos, que normalizariam e agilizariam a faturação e diminuiriam a conflitualidade. O desenvolvimento deste processo tem sido no mínimo prolixo e sujeito a vicissitudes diversas que ainda não terminaram.

 

4 – Como caracterizaria a evolução da hospitalização privada, dos seus serviços e estruturas nos últimos anos?

Sem dúvida que foram notáveis o crescimento e o desenvolvimento da sofisticação técnica e administrativa da hospitalização privada. Hoje, temos em Portugal hospitais privados equiparáveis ao melhor que há em países desenvolvidos. O melhor testemunho da qualidade e desenvolvimento é o aumento da procura dos seguros saúde e subsistemas em Portugal e a forma como até as mentalidades mais estatizantes da saúde aderem à oferta privada, por vezes com a capa de uma retórica contraditória. Porém nem tudo são rosas e a dinâmica do futuro com novos doentes e novas doenças vai exigir processos de reengenharia organizativa. Uma cultura muito baseada no consumo de atos terá de evoluir para uma outra em que a visão do doente e das doenças é um todo indissociável. É uma evolução complexa que passará pelo modelo do sistema de saúde, o seu financiamento, a estrutura dos seguros e subsistemas, a profissionalização dos profissionais de saúde, a sua formação e vínculo, as tecnologias de informação, a inteligência artificial e uma nova visão para o legítimo negócio em saúde. A concorrência e a liberdade de escolha informada serão o motor do sistema, mas é imprescindível a presença de uma regulação ativa. A hospitalização privada não deve aguardar a desagregação do setor público, mas reivindicar a sua plena integração com direitos e deveres na grande organização pertença do Estado Social, que é o Sistema de Saúde Português. Um hospital deve existir para satisfazer as necessidades dos doentes desenvolvendo, estruturas em rede capazes de operacionalizar esse desígnio.

 

5 – O que mudou e o que ainda não mudou na perceção dos portugueses em relação aos hospitais privados? E na relação destes com as autoridades do setor? 

A hospitalização privada tem hoje uma outra dimensão e prestígio, em especial porque proporciona ao doente uma acessibilidade fácil e de proximidade, trata pessoas e não números apelidados de utentes. Também resolve atempadamente a grande maioria das patologias, com melhor e mais modernos equipamentos, num ambiente mais próximo e amigável e com um corpo técnico capaz. Porém, por razões próprias e outras circunstanciais – muitos hospitais não oferecem uma suficiente cobertura técnica para patologias graves por razões que advêm da estrutura de cobertura dos seguros e de não obterem uma massa crítica para investirem em áreas mais diferenciadas. Portanto, existe na opinião pública e no meio médico, a convicção que patologia diferenciada não deve ser encaminhada para hospitais privados. Porém, um número significativo de hospitais privados oferece condições tecnológicas e de segurança para patologias diferenciadas equivalente à dos grandes hospitais públicos.

Outra convicção é que praticam preços exorbitantes e incomportáveis. Trata-se de uma falácia. Basta comparar a tabela de preços dos hospitais públicos com a praticada pelos hospitais privados em relação aos subsistemas, seguros e convenções. Seria importante fazer um estudo comparativo, mas que se torna difícil executar face aos meandros dos processos de faturação e modelos de financiamento dos hospitais públicos. Há uma realidade que é muito desconhecida – a saúde é cara, custa muito dinheiro e não existe verdadeira gratuitidade nos Serviços Públicos. Pagamos com impostos a que se somam 30% de gastos suportados diretamente do bolso dos cidadãos.

 

6 – As necessidades em saúde são hoje mais complexas, em virtude da evolução social e demográfica. Muitos dizem que requerem um modelo diferente de resposta. Porque se insiste num SNS formatado para responder aos desafios da sociedade portuguesa de 1979?

A longevidade acarreta aumento de doenças degenerativas, do cancro e de patologias do foro cognitivo. Hoje há inúmeros doentes que sofrem de várias patologias associadas. A abordagem dessas patologias tem de ser feita por equipas muito diferenciadas e numa cadeia de cuidados que não se limitam à intervenção hospitalar.

Tal vai implicar um enorme esforço na organização dos hospitais, tanto públicos como privados, bem como novos modelos de financiamento.

A evolução demográfica e a nova medicina não se compadecem com a existência de modelos formatados e coletivistas, sem autonomia administrativa e financeira, incapazes de acompanhar a evolução da sociedade e as novas exigências da saúde. Sem profundas reformas é impossível que o SNS de 1979 seja capaz de responder aos novos desafios. Não basta injetar dinheiro e profissionais. Necessita de outra visão do mundo, da sociedade, da doença. Esta revolução ditada pelas necessidades não deixará de também ser exigente com a hospitalização privada que irá alterar modelos organizacionais, com maior relevância na “governance” clínica e menos numa lógica de venda de atos.

 

7 – Aos portugueses interessa é ter bons serviços de saúde, independentemente da natureza da propriedade hospitalar. O que justifica que, em pleno pico da pandemia de COVID19, tenha existido tanta relutância em solicitar colaboração aos hospitais privados?

A dicotomia entre SNS e prestação privada, estabelecida ao longo dos anos, tem um forte cunho ideológico que, não sendo exclusivamente português, é muito evidente em Portugal. A ideologia em parte nenhuma do mundo trata doenças, antes pelo contrário, provoca colapsos como o que, infelizmente, estamos a assistir em Portugal. Sem financiamento e nova organização não conseguimos sustentar um Serviço Público exclusivista. Como esse financiamento não pode existir e uma nova organização de trabalho abana muitos interesses – o SNS caminha para um colapso que não convém a ninguém, incluindo ao setor privado.

Não aceitar o contributo dos hospitais privados na crise da pandemia foi a interpretação extremada da ideologia deste SNS, onde os doentes e os cidadãos não estão em primeiro lugar. O que aconteceu foi o erguer de um muro em que contava mais a visão idílica de um SNS estático do que as necessidades dos cidadãos. Claro que não podemos negar fragilidades do setor privado na área da medicina intensiva, mas esqueceram-se do seu potencial na resolução das situações não COVID, que tanto irão condicionar a acessibilidade nos próximos anos. Mesmo assim, o setor privado teve um papel extremamente importante no auge da crise da pandemia, como aliás acabou por ser reconhecido.

 

8 – Como caracterizaria o sistema de saúde ideal para Portugal?

Fazer reformas tem sido cada vez menos a vocação dos políticos. As reformas criam turbulências e ferem muitos interesses instalados.  Num país que não cria riqueza para manter o que devia ser preocupação de todos – o Estado Social – as reformas anunciadas não são mais do que injeção de parcos dinheiros para reequipamento e admissão de recursos humanos que, uma má organização, torna pouco rentáveis.

Só um Governo com coragem e visão estratégica será capaz de introduzir a separação entre prestador e pagador, promovendo a descentralização e reforçando o papel “garantia“ do Estado: introduzir modelos de financiamento misto que, de uma forma encapotada, já acontece; reorganizar as estruturas de prestação face às novas doenças e à evolução etária, integrando cada vez mais os cuidados hospitalares e primários; combater redundâncias consumidoras de recursos; estabelecer a liberdade de escolha e a responsabilização do cidadão face aos comportamentos saudáveis; uma nova política de recursos humanos. Com os médicos ou outros profissionais, devem privilegiar-se relações de parceria, onde se conjugue remuneração com objetivos alcançados. O exercício do trabalho em exclusividade deve constituir um objetivo negociado, onde o aumento de produtividade e dedicação compensaria largamente maiores custos. Portugal não pode continuar a ser um dos poucos países da Europa onde os profissionais de saúde viajam entre instituições por vezes com práxis menos transparentes.  Finalmente, o Ministério da Saúde deve passar a ser um Ministério de todo o Sistema de Saúde, não lhe competindo a gestão de unidades prestadoras, mas o desenho das grandes linhas estratégicas e a sustentabilidade financeira do sistema.

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