«O sistema de saúde esgotou a sua capacidade e a sua atratividade, apesar de continuar a reclamar-se de cobertura universal e de acesso geral»

«O sistema de saúde esgotou a sua capacidade e a sua atratividade, apesar de continuar a reclamar-se de cobertura universal e de acesso geral»

O cirurgião e professor universitário José Fragata lançou recentemente um livro em que defende «uma reforma profunda» orientada para um sistema que integre todos os setores prestadores de cuidados de saúde. E assegura que, no atual contexto, Portugal está a «desperdiçar uma oportunidade irrepetível para reformar» e adotar um sistema que «estimularia a concorrência, espicaçaria a qualidade e acabaria por normalizar os consumos e reduzir os preços».

  1. Editou em julho o livro “A reforma necessária do Sistema de Saúde Português”. Mais do que mudanças estruturais, propõe uma práxis de gestão na Saúde que a Constituição já prevê: um sistema inclusivo que integre todos os setores prestadores. Na prática, quais os principais pilares do modelo que propõe?

O problema maior do sistema de saúde português não é o que está escrito na Lei Fundamental, mas sim o modelo da sua prática. O sistema não é, de todo, inclusivo, antes vive dum SNS que há muito esgotou a sua capacidade e a sua atratividade, apesar de continuar a reclamar-se de cobertura universal e de acesso geral. Na verdade, o recurso pelo SNS ao setor privado e social é sempre regateado e verdadeiramente alternativo, numa complementaridade sempre pautada pela suspeição de que, o que é privado é pecaminoso e mau e o que é público é bom e fiável. O que se defende neste livro é um sistema inclusivo, à partida, envolvendo o setor público, o privado e o social, funcionando em rede e tendo o SNS como eixo central organizador. Um sistema em que os doentes pudessem escolher livremente onde querem ser tratados. O setor público teria a responsabilidade pela coordenação e regulação e deteria áreas de maior sensibilidade e interesse público, como a saúde pública ou o setor do sangue e da transplantação…

  1. Se a maioria reconhece a sua necessidade, o que falta para a sua adoção? O que impede a sua implementação?

O que tem impedido a sua implementação é o viés ideológico que interpreta erradamente da Constituição que o Estado deve ser o prestador, o financiador e o regulador da saúde, mantendo um setor empresarial público sob o seu controle político direto. O Estado tem que prover a que todos tenham acesso (em qualidade, em tempo, localização e capacidade de pagar) aos cuidados de saúde de que precisam. Não está escrito que o Estado tenha que prestar esses cuidados e, muito menos, em primeira linha e dominância preponderante.

  1. No início do seu livro faz questão de desmistificar a questão da saúde não ser gratuita. É esta perceção que alguns insistem em inculcar na opinião pública um dos maiores entraves à mudança?

A saúde “não tem preço”, mas tem custos e estes são elevados. A noção politicamente veiculada de que a saúde é de livre acesso e tendencialmente gratuita, incute nas populações uma noção de desvalorização da saúde, leva a um menor cuidado na sua manutenção e, pior do que tudo, é falsa. Primeiro, porque a saúde é paga por todos nós, não é gratuita; depois, porque pela via dos impostos que pagamos o Estado só financia 59% dos gastos com a saúde, sendo que os restantes 41% são pagos pelos cidadãos, adicionalmente aos impostos. Destes, mais de 30% serão gastos diretos das famílias (out of pocket), uma percentagem que é o dobro da média europeia que é de 14%. Aliás, isto faz com que o SNS, por muito apontado como meio de equidade social, se assuma hoje como um meio que agrava a injustiça social, ao sujeitar pobres e ricos ao mesmo esforço para suprirem as suas necessidades com a saúde.

  1. Que vantagens poderia ter este sistema inclusivo para a saúde dos portugueses?

Teria vantagens de diversa ordem: primeiro, permitiria que os portugueses pudessem aceder, escolhendo livremente, entre uma rede de prestadores diversificada e com elevada diferenciação tecnológica; depois, vantagens de qualidade – basta só lembrarmos que ao longo dos últimos 10 a 15 anos o investimento tecnológico para a saúde tem estado do lado do setor privado. Em terceiro lugar, a diferenciação de prestadores estimularia a concorrência, espicaçaria a qualidade e acabaria por normalizar os consumos e reduzir os preços. O Estado teria aqui um papel imprescindível, mais do que como prestador e em concorrência, como regulador e normalizador. 

  1. Este seria, então, um sistema próximo do conceito de Estado-Garantia?

Numa atividade sempre em mudança e com elevada competitividade como a saúde a colocação de diversos setores operando em rede no ecossistema permitiria estimular a busca pela qualidade, pelo acesso, pela performance e pela redução dos custos, com interesse para os cidadãos. O Estado atuaria dominantemente como regulador, assistindo o modelo de financiamento (por impostos, por seguros e contributos empresariais), na compra de pacotes de serviços e no prover do acesso (tempo e localização) e na qualidade dos serviços. A responsabilidade dos recursos humanos e da gestão deixaria de pertencer ao Estado, que poderia simplesmente interferir na regulação das carreiras, em articulação com as ordens profissionais.

  1. Um dos temas que aborda no seu livro é o impacto da tecnologia na saúde. Que papel pode ter a digitalização da saúde na adoção e sustentabilidade deste sistema inclusivo que propõe?

A digitalização da saúde é absolutamente imprescindível, direi mesmo, emergente. Deve abranger a área clínica  – processo clínico eletrónico centrado no doente e não na instituição, conferindo-lhe total mobilidade e uma disponibilidade imediata de toda a informação clínica em qualquer ponto da rede de cuidados, seja pública, seja privada ou social. Deve ainda abranger a gestão e a administração central da saúde, como foi feito com enorme eficácia para o setor da fiscalidade (…), e também para a colheita de dados de saúde, de forma a extrapolar conhecimento, nomeadamente com recurso à Inteligência artificial. Não será demais realçar que a digitalização é um passo imprescindível ao funcionamento integrado de uma rede de prestadores, tendo os doentes no seu centro.

  1. Termina o seu livro a dizer que “esta mudança não irá, provavelmente, acontecer”. É mera psicologia invertida ou entende mesmo que Portugal vai continuar a privilegiar os interesses particulares em vez dos legítimos interesses do doente/contribuinte? Em vez de colocar verdadeiramente o doente no centro do sistema?

Não gostaria de ter terminado este livro com essa frase, que é de um teor algo pessimista! No entanto, a experiência de todos estes anos, a constatação do imobilismo do sistema, a notória incapacidade reformista, e a continuidade do excessivo peso das opções ideológicas, em detrimento de quaisquer evidências técnico-científicas, levam-me a suspeitar e mesmo a assumir que relativamente à saúde “nada acontecerá”. Aliás, a confirmar as minhas piores suspeitas, assistimos hoje ao anúncio de todo um conjunto de medidas que tentam remediar pontualmente os males do SNS, a “colocar-lhe pensos rápidos para alívio dos sintomas” sem abraçar a sua verdadeira reforma. A reforma de que tanto necessita e sem a qual o nosso sistema de saúde deixará em breve de ser sustentável, culminando inexoravelmente numa saúde para pobres e noutra para ricos, comprometendo os ideais que presidiram à criação verdadeiramente revolucionária do SNS, o acesso universal a cuidados de saúde, gratuitidade tendencial e a promoção de equidade.

Não será pela criação de mais órgãos reguladores, ou de supervisão interventiva, ou pelo aumento dos vencimentos médicos, ou pela construção de um ou outro hospital, e ainda menos pela remuneração premiada de gestores públicos, que se criará maior atratividade para o pessoal que hoje debanda do SNS, ou se promoverá mais e melhor acesso para os utentes, e tão pouco se facultará a tão desejável liberdade de escolha por parte destes…

Não me parece, por isso, que estejamos no bom caminho e receio mesmo que estejamos a desperdiçar uma oportunidade irrepetível para reformar e para mudar o sistema de saúde português. Este meu livro não foi mais do que um modesto contributo, um chamar de atenção para essa necessidade de reforma. 

NOTA: Entrevista concedida no dia 1 de agosto de 2022.

Partilhe

Deixe um comentário